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Artigo: Diga o que faz com o seu dinheiro e eu dir-lhe-ei quem é
Sofia Moreira – Psicóloga Clínica, Hapiness Manager
José Pedro Sequeira – Psicólogo Clínico, Psicoterapeuta Psicanalítico
Este artigo é um exercício de pensamento sobre a relação singular que cada um de nós tem com o dinheiro.
A forma como construímos a relação com os nossos desejos espelha a nossa organização financeira. O dinheiro fala de nós. A particularidade do seu manuseamento revela como somos. Podemos ser mais reflexivos ou mais impulsivos, mais ou menos poupados ou gastadores.
A relação com o dinheiro tem uma ligação estreita com a forma como somos?
Desejamos abordar a forma como as diferentes organizações de personalidade podem relacionar-se com o dinheiro. Não se pretende enquadrar os vários tipos de personalidade numa relação tipificada com o mesmo, mas sim tentar pensar as possíveis ligações que os elementos da personalidade têm na expressão financeira de cada um.
A personalidade é o padrão particular que cada um de nós apresenta em relação ao modo de pensar, sentir e comportar-se socialmente. A psicologia investiga as motivações, as origens, as formas e consequências dos comportamentos.
As questões que procuramos colocar vão desde a gestão financeira individual, às decisões que as empresas e as instituições tomam nos investimentos e nos gastos daquilo a que, ultimamente, se tem chamado a economia comportamental, como bem salientou Daniel Kahneman, no seu livro “Pensar Depressa e Devagar”, vencedor do prémio nobel da economia em 2002 e um dos mais influentes psicólogos da história, que mostrou que as decisões nestes domínios não são racionais. Este autor expressou metaforicamente duas modalidades de funcionamento do cérebro: o cérebro rápido ao lado automático e o cérebro devagar ao lado racional.
O desenvolvimento histórico das várias formas das operações que envolvem dinheiro assumem, quase sempre, o papel de meio de troca como função económica e social, negligenciando a função psicológica das tomadas de decisão, conscientes e inconscientes, dos decisores que somos todos nós.
Dentro dos múltiplos significados da função do dinheiro e da medida do seu valor ao longo da história, a perspetiva sobre a qual incidiremos a nossa análise, será a de pensar o significado psicológico do dinheiro. O extrato bancário pode permitir fazer um raio X das motivações da relação com o vil metal.
Assim sendo consideramos importante olhar para os vários tipos de personalidade e ajudar a decifrar o comportamento que cada uma delas tem com o dinheiro. Neste sentido tentaremos pensar estas ligações, nas personalidades psicótica, neurótica, narcísica, esquizóide, paranóide, dissociativa, maníaca, depressiva, fóbica, compulsiva e dependente, no entanto, existem outros tipos e subtipos dos quais não abordaremos neste lugar.
Freud, na sua construção teórica, não deixou de fazer referência ao valor do dinheiro na economia psicológica, afirmando que o dinheiro, no desenvolvimento psicológico e emocional aparece ligado aos conflitos da fase anal. Esta fase é uma das fases do desenvolvimento em que o conflito emocional se centra à volta do dar e receber. Para o bebé, neste momento do desenvolvimento, as fezes são o primeiro objeto de troca com o cuidador, a primeira coisa que a criança tem para negociar. A forma como a criança negoceia o afeto com o seu cuidador, retendo as fezes e como resolve este conflito, pode vir a organizar um sintoma importante na forma como futuramente irá viver a sua vida financeira.
Todos nós temos aspetos dos vários estilos de personalidade, quaisquer que sejam as nossas tendências principais. As dinâmicas da personalidade não constituem psicopatologia. Só é apropriado considerar que alguém tem um caracter patológico ou uma perturbação da personalidade quando as suas defesas são tão estereotipadas que impedem o desenvolvimento psicológico e a adaptação.
Ao entendermos melhor o funcionamento da personalidade torna-se mais fácil identificar como as finanças de alguém podem servir de termómetro da relação personalidade/dinheiro.
Personalidade psicótica
A personalidade psicótica é caracterizada por um desligamento da realidade objetiva, ocorrendo frequentemente delírios. As pessoas que se organizam de uma forma psicótica com a realidade constroem, também, uma relação particular com o dinheiro, uma realidade paralela. Apresentam um padrão de consumo inadequado face às suas possibilidades financeiras, alimentam fantasias a respeito do dinheiro, nomeadamente, quanto à origem, quanto tempo o dinheiro dura e a quantidade existente. Dificilmente percebem os absurdos que cometem em gastos e investimentos, mesmo quando aconselhados e confrontados com os factos que desmentem a fantasia.
Personalidade neurótica
As pessoas que têm medo das crises, das inflações, dos mercados de capitais, das informações ameaçadoras das oscilações dos juros, dos meios de comunicação sobre o valor do dinheiro, privam-se injustificadamente, sempre com medo de perder, como por exemplo perder o trabalho, de terem gastos inesperados, de um imprevisto em grande escala do qual só se livrarão graças às suas economias. Muitas vezes, o que decorre daqui, é que fazer um excesso de poupanças, pode tornar-nos incapazes de usufruir dos prazeres simples da vida. Isto é o que caracteriza um avarento – carácter obsessivo.
É célebre a obsessão do fundador da empresa IKEA, Ingvar Kamprad, em poupar dinheiro. Tendo sido uma das pessoas a ter uma das maiores fortunas do mundo, vestia roupa barata, andava de transportes públicos e comprava lacticínios no limite da validade porque eram mais baratos – se possível com vales de desconto.
Outra manifestação neurótica prende-se com aqueles que delegam o seu dinheiro à responsabilidade de terceiros. Por exemplo, casais na economia familiar, empresas em sociedade, bancos, intermediários de crédito. Na despreocupação de quem delegou em terceiros esta responsabilidade, pode acabar em desastre. São inúmeros os exemplos de queixas a este nível. É publicamente conhecido, o caso do artista e músico Leonard Cohen que depois de se reformar, com mais de 70 anos, teve de voltar a fazer espetáculos por causa da má gestão do património realizada pela sua assessora financeira.
Personalidade narcísica
As pessoas cujas personalidades se organizam em função da manutenção da autoestima pela aprovação do exterior são denominadas de narcísicas. Muito preocupadas com a opinião dos outros, as pessoas organizadas narcisicamente, podem no íntimo sentir-se uma fraude e não amados.
O narcisismo é um sentimento de grandiosidade, marcado pela arrogância, pela dificuldade empática, e que decorre de uma incapacidade de aprender com os erros, com as falhas e as perdas. Estas pessoas auto convencem-se que são deuses das finanças, construindo uma autoimagem patologicamente autoconfiante, como por exemplo, investidores agressivos que querem ganhar tudo de uma vez só, sendo que nada possa garantir esse ganho.
Personalidade esquizóide
Esta personalidade é caracterizada pelo sentimento de que o dinheiro pode gerar um mundo particular de proteção e conforto, isolando-o do sofrimento do mundo exterior. É comum entre pessoas que se iludem procurando o amor/sexo através de riquezas materiais, ou em procuras extravagantes por prazeres imediatos, bem como procurando hábitos excêntricos e caros. Como exemplo, imaginemos uma pessoa que modifica o seu carro Tunning em mais de 100 000 euros porque é apenas dentro do seu carro que se sente poderoso.
Personalidade paranóide
As personalidades paranóides apresentam um carácter de suspeição, falta de humor e grandiosidade. As pessoas com estas características têm muita dificuldade em confiar em estranhos. Afetivamente, os paranóides debatem-se com emoções como a raiva, o ressentimento, o espírito de vingança, bem como de outros sentimentos hostis que os leva a sofrer de um medo intenso.
Na personalidade paranóide o dinheiro está sempre ameaçado por todo o tipo de forças. São os exemplos das pessoas avarentas e pessoas extremamente avessas ao risco.
Personalidade dissociativa
Neste tipo de personalidades constrói-se uma espécie de amnésia em relação à vida financeira. As pessoas com esta personalidade sentem ou alegam não saber ao certo o que fazem com o seu dinheiro. Estas personalidades vivem de uma forma, mas quando lidam com dinheiro mudam radicalmente como se tivessem uma dupla personalidade. Um exemplo clássico é o do homem que provê a casa com dinheiro, mas exige que a mulher o administre por inteiro porque não quer pensar nisso.
Personalidade maníaca
A mania é o contrário da depressão.
Akhtar (1992) resume: “O indivíduo com personalidade hipomaníaca é, por fora, bem-disposto, muito sociável, dado à idealização dos outros, viciado no trabalho, namoriscador e bem-falante, enquanto secretamente se sente culpado da sua agressividade para com os outros, incapaz de estar sozinho, pouco empático, incapaz de amar, corruptível e com um estilo cognitivo sem abordagem sistemática”.
São conhecidos por esquemas grandiosos, pensamentos rápidos e ampla liberdade em relação às exigências físicas comuns, tais como alimento e sono.
A pessoa maníaca é uma gastadora impulsiva, em geral, de bens desnecessários. Em alguns períodos sentem arrependimento e culpa. O maníaco não deseja gastar dinheiro quando sai de casa, mas quando encontra oportunidade age por impulso decidindo irrefletidamente.
Personalidade depressiva
As pessoas em estados depressivos desviam dos outros a maior parte do seu afeto negativo e dirigem-no contra si próprias, odiando-se de uma forma totalmente desproporcionada em relação às suas falhas reais. Estão demasiadamente conscientes de cada “pecado” que cometeram, de cada gesto gentil que deixaram de dar, de cada tendência egoísta que lhes passou pelo espírito.
A pessoa que estabelece um vínculo depressivo tem uma relação de culpa e tristeza com o dinheiro. Para o depressivo lidar com dinheiro é uma fonte de sofrimento, uma praga bíblica, “a raiz de todos os males”. Desta forma alheiam-se e esperam que os outros resolvam. Rejeitam relacionar-se com o dinheiro e em geral dos benefícios materiais que ele pode proporcionar. Muitas vezes, porém, os mecanismos depressivos impulsionam o sujeito como mecanismo de compensação a um consumismo desenfreado. A insatisfação que não consegue ser transformada por uma via mental é agida na falsa solução das compras compulsivas.
Personalidade fóbica
Uma pessoa que tem uma personalidade fóbica tem um sentimento de medo muito intenso e incontrolável relativamente a situações ou objetos temidos. Embora estes, não devam ser considerados perigosos, o sujeito passa a antecipar estas situações e a tentar evitá-las. Mesmo reconhecendo que este sentimento é irracional e exagerado, não consegue ter controlo no seu comportamento pelo intenso sentimento de angústia.
Os fóbicos evitam ativamente o dinheiro com muita ansiedade associada, como se o dinheiro pudesse ser perigoso. Sentem igualmente grande insegurança, baixa autoestima e confiança o que condiciona fortemente as suas decisões financeiras.
Personalidade compulsiva
A compulsão diz respeito a uma peculiaridade de determinados sintomas obsessivos: trata-se de pensamentos ou atos que o sujeito realiza ainda que lhe pareçam um corpo estranho, pensamentos ou atos movidos por uma força irresistível contra a qual o sujeito gostaria de lutar. A compulsão resulta de um conflito psíquico e de uma luta subjetiva entre duas injunções opostas, estando o sujeito impossibilitado de escolher qualquer uma delas. Encurralado nessa hesitação exasperante, a resposta do sujeito é o ato compulsivo.
Neste tipo de personalidade, o dinheiro é desejado como se se tratasse de uma droga. Há uma organização que procura a todo o custo o enriquecimento que, como qualquer compulsão, é uma estratégia compensatória para não se confrontar com outros aspetos da vida.
Personalidade dependente
As pessoas com personalidade dependente têm necessidade de serem cuidadas, submissas, sempre com medo de separações. Têm dificuldade em tomar decisões, necessitam que os outros assumam a responsabilidade pelos seus atos, não discordam, não iniciam projetos. Sentem-se mal quando ficam sozinhas e, por isso, evitam-no a todo custo.
Neste tipo de organização da personalidade, como o próprio nome indica, existe uma dependência em relação a terceiros, pelo que o próprio entrega nas mãos de outros a administração do dinheiro não assumindo a responsabilidade pelo mesmo.
III. A vivência das finanças expressa a intimidade de cada um de nós
Se considerarmos que todos temos um bocadinho destas personalidades dentro de nós, como encontrar uma relação saudável com o dinheiro? É possível aprender a ser financeiramente saudável?
Nas nossas vidas, é impossível haver uma ausência de perturbação, pelo que ao longo da vida, todos nós, em alguns momentos, vacilamos, duvidamos e decidimos em resposta às nossas oscilações. Porém, serve esta análise para que estejamos mais conscientes dos fatores de personalidade e para que possamos tomar as melhores decisões no que diz respeito à utilização de uma racionalidade financeira.
O conhecimento psicológico, nomeadamente a psicoterapia financeira, deve estar ao serviço de todos, para que melhor se possa entender o que significam as finanças na vivência íntima de cada um de nós.
Seja qual for a nossa personalidade e a respetiva relação com o dinheiro, tomar consciência sobre o que fazemos com ele ensina-nos a melhor saber quem somos e como, eventualmente, precisamos de fazer mudanças, tornando-nos mais responsáveis e financeiramente mais autónomos nas nossas vidas.
Com esta reflexão pretendemos chamar à atenção que existem padrões de personalidade inconscientes que determinam a nossa relação com o dinheiro e que a chave para não sofrermos com as questões financeiras é, justamente, descobri-los.
Um maior conhecimento de quem somos facilita uma maior consciência das emoções associadas à nossa personalidade o que contribui para que a utilização do dinheiro resulte num melhor saldo final.
Pretendemos assim, contribuir com esta reflexão para uma melhor saúde financeira.
Referências bibliográficas:
Furnham, A. & Argyle, M. (2000). “A Psicologia do dinheiro”, Editor: Sinais de Fogo Publicações
Freud, S. (1908). “Caráter e erotismo anal”. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 157-164. (ESB, 4).
Kahneman, D. (2014). “Pensar, depressa e devagar”, Editor: Temas e Debates